terça-feira, janeiro 09, 2007

Maria Beatriz


na nossa infância os dias eram outros
longos dias de sol
vividos em sossego
no viver sempre aberto de nossa quietação
sem pressas e sem medos

sages de longa idade
sabíamos o tempo
vivíamos sem tempo
e a vida a rodear-nos braços que nos amavam

não tínhamos memória
do que antes conhecíamos
cada dia era um dia
e não uma cadeia
a prender-nos as mãos a horas já passadas
a gestos copiados

vivíamos o dia
dormíamos a noite
e nem quem nos morria estava ausente

a morte era uma porta
por onde entravam todos que saíam
a morte não havia
morríamos ao dia em cada noite
e em cada dia a vida renascia

Maria Beatriz (Évora, 1973)

Maria Beatriz, 5 de Janeiro de 1923 a 1 de Dezembro de 2006

O mundo não ficou indiferente com a luminosa passagem desta nossa Amiga, Mestre, Irmã, Mulher, Mãe e Avó. Com a sua Palavra, o seu Gesto, o seu Sorriso, o seu Silêncio, conseguia transmutar situações de conflito com a força da sua afeição.
A Maria Beatriz foi um Ser de convicções profundas e vividas e foi além de tudo uma mulher de ACÇÃO e de COMPROMISSO, sustentados por uma Ética de respeito por si própria, pelos outros e pela Vida.
Compromisso em primeiro lugar com a VIDA UNA – dizia ela tantas vezes: “Não podes tocar a flor sem perturbares a estrela. Tudo está ligado a tudo.” – VIDA UNA que a tudo envolve, tudo traz e tudo leva… Compromisso de Amor pelos outros… Compromisso para com as crianças e os jovens… ela que foi Professora de centenas e centenas de jovens homens e mulheres que transportaram em si, guardaram em si aquela Palavra, aquele Gesto, aquele Sorriso, aquele Silêncio que tão fundo nos tocou e continuará a tocar e a marcar enquanto vivermos, enquanto partilhamos a sua Mensagem de Amor e de Beleza. Compromisso para com a defesa activa dos animais e da Natureza, ela própria VEGETARIANA por COMPAIXÃO e por vontade própria.
Maria Beatriz e Fernando, seu Companheiro de praticamente sessenta anos de vida em comum, foram pioneiros, autênticos exploradores numa terra de preconceito, de mesquinhez e de intolerância como o foi a cidade de Évora em particular, mas como de certa maneira o foi toda a sociedade portuguesa dos anos 40 do século passado. A Teosofia, a Filosofia, a Música, as Artes, o Vegetarianismo, o Livre Pensamento e o Auto-conhecimento acompanharam-nos desde a sua primeira hora enquanto Educadores, brotando muito naturalmente de dentro para fora. A manifestação activa destes saberes, através de actos e relações autenticamente afectivos e educativos, ajudaram a que dezenas, senão centenas de jovens, tenham tido a oportunidade de organizar o pensamento e a sua própria conduta de maneira diferente, em liberdade e em cooperação criadora.
O Ramo “Boa-Vontade” da Sociedade Teosófica de Portugal, criado em Évora, nos finais dos anos 50 do século passado teve na Maria Beatriz um dos seus principais animadores e sustentáculos.
De aparência frágil e simples, Maria Beatriz foi um exemplo de força interior, de auto-sacrifício e de dádiva como nenhum de nós concerteza poderá igualar em exemplo e em qualidade. Já nos últimos dias da sua vida ela continuava a trabalhar, na medida do possível e do suportável, na tradução, na divulgação e na clarificação de textos de J. Krishnamurti… Continuava a ir às reuniões do Ramo “Boa-Vontade”, com uma vontade férrea, cheia de dores, incomodada com um mal-estar que víamos e pressentíamos… Nós outros que por pequenos contratempos de dor de cabeça, de cansaço após um dia de trabalho, de mal-estar passageiro, ou por isto ou por aquilo, deixávamos de comparecer à reunião quinzenal… Ela, quando não comparecia, e era raríssimo que isso acontecesse, era porque de facto estaria fisicamente impossibilitada de se deslocar… Assim tivemos a grande Alegria, o grande Privilégio de poder sempre contar entre nós com a presença luminosa, amiga e sage da Maria Beatriz. E continuaremos a contar com ela no nosso coração, nas nossas orações e meditações, nas nossas memórias mais queridas, mais profundas e imorredouras e principalmente nas nossas relações de compromisso de uns para com os outros, para com a Vida Una.
A OBRA com a qual ela se comprometeu plenamente ao longo da sua extraordinária e riquíssima vida ainda não terminou, saibamos continuá-la… Mais do que saber, tenhamos a coragem e a força anímica, como ela o teve durante anos e anos e anos, de olharmos a VIDA de frente e termos confiança absoluta nela, sem medo, sem preconceitos, com aceitação completa daquilo que acontece, procurando nós deixar este lugar em que agora vivemos, um bocadinho melhor do que estava quando chegámos e o encontrámos…
Tenhamos a coragem de nos despedirmos do seu corpo físico, contudo outra Realidade com toda a certeza aconteceu à Maria Beatriz, tal como a borboleta que após muito esforço conseguiu sair do seu casulo e voou em liberdade e com toda a alegria do mundo em direcção ao Sol, ao Logos, onde tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá se encontra inefável e eternamente inscrito com letras feitas de ouro, de luz e de amor a aguardar o seu e o nosso regresso.

Como dizia Maria Beatriz, num pequenino poema escrito pelo seu punho, em 1977, acredita que

“quando vires o sol acontecer
não digas são os novos
quando a noite descer e o silêncio a envolver como um bálsamo
não digas são os velhos
nem os velhos nem os novos
apenas a Vida se cumpre
(a Vida sem idade)”


R.A.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

A HERANÇA E O TEMPO NOVO

Maria Beatriz Serpa Branco

O que herdaste de teus pais, conquista-o e possui-lo-ás, diz-se no Fausto, de Goethe.
A herança terá de ser redescoberta, para que seja de hoje, para que seja viva e nossa, servindo realmente todos.
É preciso morrer ao que já foi acabado, ao que está gasto e realizado, para que a vida descubra a sua face nova.
Assim ontem se mostra igual à esperança. Assim ontem e amanhã se tornam hoje, o tempo real. O tempo chave desses dois contrários.
A Herança que H. P. B. recebeu de nossos Pais, assim a possuiu ao dá-la a todos, assim a conquistou ao dá-la ao mundo.
E a «morada» que, com Henry Olcott, sonhou e construiu é o lugar sem lugar para aquilo que nos deu.
Morada sem tecto, inacabada, para que se vejam as estrelas. Morada sem portas, para que todos entrem e nada os estorve de levar o que quiserem.
Há na vida destinos nascidos sobre encruzilhadas. Difíceis e criadores tais destinos.
Sobre uma encruzilhada do tempo, assim nasceu também a Sociedade Teosófica. Voltada aos quatro ventos (antigos novos ventos), humanamente frágil, tem a sua base sobre a rocha das idades.
Assim o que é sem tempo vem fecundando o tempo e o faz realidade. Assim a Antiga Sageza se torna sempre nova, nas formas perecíveis. Que a vida morre para reviver.
Na Sociedade Teosófica de Portugal, [cujos cinquenta anos agora celebramos], também alguns conquistaram a Herança tentando dá-la aos que depois vieram.
Lembramos com profunda e afectuosa gratidão todos os que entre nós fundaram a «morada» e com a sua dedicação e espírito fraterno a conservaram habitada de vida.
Em representação de todos os outros a quem tanto devemos, recordamos aqui Jeanne Sylvie Lefèvre e Félix Bermudes, com toda a nossa ternura e reconhecimento.
Possamos nós continuar o que fizeram, tornando nossa a Herança por uma nova dádiva e uma dádiva nova.
A Sociedade Teosófica será o que nós formos. Fará o que fizermos, para continuar trazendo ao mundo aquela «esperança esquecida», nessa antiga maneira nova de, em Amor, viver e conviver.
O mundo e nós estão a fazer-se ainda.
Nesta encruzilhada do tempo, será morrendo ao velho que transmitiremos a Herança. E a vida em nós fará nascer o tempo novo.

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Mensagem de Maria Beatriz Serpa Branco, Presidente do Ramo «Boa-Vontade» de Évora, por ocasião do Cinquentenário da Sociedade Teosófica de Portugal em Setembro de 1971. Mensagem publicada no Boletim da S. T. P. “OSIRIS”, n.º156, Lisboa, Outubro-Novembro-Dezembro de 1971.